segunda-feira, 14 de março de 2011

A Importância dos Acentos Poéticos

Introdução
Tendo em vista que o objetivo dos alunos de graduação do Curso de Teologia, e estudiosos, de modo geral, do texto original do Antigo Testamento é obter o real sentido do texto, e adquirirem certo grau de autonomia na Língua do Hebraico Bíblico, me parece oportuno salientar a importância dos acentos poéticos como valiosos instrumentos a serem utilizados na exegese.

A Importância dos Acentos Poéticos
Segundo o gramático Page H. Kelley (1924-1997), os acentos hebraicos servem a três propósitos:

1) Eles marcam a sílaba tônica (sílaba acentuada) da palavra. (...) 2) Os acentos hebraicos regulam a recitação dos textos bíblicos nas sinagogas. (...) 3) Os acentos hebraicos servem como sinais de pontuação, mostrando como era percebida a estrutura da frase.[1]

Diante disto, qual a importância prática destas 3 funções descritas para a exegese de um texto? Que elas podem revelar? Seriam elas realmente um parâmetro relativamente seguro para guiar o raciocínio textual, ou apenas uma visão hermenêutica dos Massoretas?
Lambdin, renomado gramático, diz o seguinte:

O texto do Hebraico Bíblico é dividido em dois pequenos grupos de cláusulas conhecidos como versos. Cada verso é costumeiramente subdividido em duas partes freqüentemente de tamanho desigual, o primeiro é delimitado pelo acento conhecido com ‘Atnah, e o segundo delimitado por um similar ao Meteg chamado Silluq, seguido de Soph Pasuq, marcando o fim do verso. Cada uma das metades do verso é então subdividida em tantas partes quantas a sintaxe exigir, com cada unidade de acentuação recebendo uma marca de acento. Os acentos são classificados em dois grupos principais: conjuntivos e disjuntivos, o primeiro é utilizado quando uma palavra está estreitamente ligada de modo sintático com a palavra seguinte, e o segundo desligando-a. O uso dos vários acentos é muito complexo (...).[2]

Bem, ao que parece, eles tem uma função importante, contudo, secundária, ao menos para o primeiro contato com a língua, como é o caso dos iniciantes do estudo do Hebraico Bíblico, no nível da graduação, aqui no Brasil. De qualquer forma, pelo menos, a dois sinais principais Lambdin faz menção em sua gramática: Atnah e Soph Pasuq, que são os responsáveis pelas duas grandes divisões do texto.
Ora, se estes dois sinais merecem atenção em várias gramáticas para iniciantes, é razoável pensar que os outros sinais também tenham sua importância, em um nível mais aprofundado de estudo. Quanto a isto ainda nos destaca Rudolf Meyer (1605-1638):

(...) como sinais de pontuação os acentos indicam a divisão lógica da oração. Os sinais da oração propriamente ditos são aqueles acentos que marcam os limites de sentido. Recebem o nome de (...) ‘sinais de sentido’, ou, por regerem a oração, o nome de (...) ‘reis’, e em nossas gramáticas, o de disjuntivos, ou separadores. Os sinais restantes, que servem para a modulação e indicam a estreita união entre palavras que não devem se separar, se chamam (...) ‘servos’, ou acentos conjuntivos, ou de união.[3]

Mais à frente ainda escreve:

(...) Os acentos, sobre tudo os chamados grandes separadores, são na maior parte dos casos uma valiosa ajuda para deduzir a divisão lógica e sintático do texto.[4]

Diante desta afirmação parece ficar ainda mais evidente a importância da utilização deste sinais, contudo, não de forma irrestrita e simplista. Meyer utiliza o termo “deduzir”, ou seja, a partir de pistas concretas e confiáveis o exegeta ainda precisa se valer do bom senso, prática e outros conhecimentos da língua, principalmente quando se tratar do sistema verbal e seus “jogos” de cláusulas com os modos perfeito e imperfeito.
A divisão sintática de um texto é o reflexo da divisão lógica das idéias que o autor tinha em mente. Desta forma, seguindo-se os princípios norteadores destes sinais parece um bom ponto de partida para se adentrar na mente do autor, entender seu fio condutor de idéias, prioridades e objetivo final do texto.
Edson de Faria também coloca em seu manual o seguinte:

(...) Assinalam divisões semânticas e estabelecem relações sintáticas. Nesta função, os acentos assinalam as pausas e o encadeamento entre as cláusulas do versículo.[5]

Waltke e O’connor escrevem:

(...) As cantilenas tradicionais antigas dos católicos romanos, dos gregos ortodoxos e das igrejas sírias estão relacionadas. Todos utilizam uma ‘nota de recitação básica’ (e motivos ou tropos relacionados) que comporta o tamanho de cada cláusula. O sistema de acento pontua o texto e é, então uma característica muito importante em sua análise sintática; apesar do termo acento, o sistema não se refere primariamente ao grau de intensidade ou duração das palavras. Esta característica da gramática hebraica é tão importante para a compreensão que as fontes judaicas medievais prestavam mais atenção a ela do que ao estabelecimento da pronúncia correta de palavras.[6]

O recurso utilizado pelos judeus com relação ao texto bíblico, passa pelas leis naturais deixadas por Deus quanto à lógica, harmonia, lingüística e gramática, tanto que em sistemas parecidos era utilizado, ainda que em diferentes formas, por outras culturas também, como ressaltam Waltke e O’connor ao citar o grupo dos católicos com suas cantilenas.
Isso vem enfatizar a real importância dos acentos, tendo em vista, que o objetivo de se comunicar a verdadeira idéia e sentido do texto estava tão presente que um sistema foi criado para esta função. Até mesmo na pronúncia poderia haver variação, mas nunca quanto ao que seria apreendido do texto. Vale ainda destacar um fator logístico da época: nem todos sabiam ler, e nem teriam acesso ao texto por motivos vários tais como escassez dos mesmos, inabilidade para lidar com ele, e mesmo a falta de licença para o acesso. Desta forma, o que restava era apenas a audição e a memorização, algo sempre enfatizado nos povos do Oriente Médio.
Assim, a leitura deve ser bastante precisa, clara e enfática para que as idéias fossem distinguidas umas das outras, bem como os grupos de idéias, e os grupos ainda maiores, ou seja, algo parecido com a função dos sinais vírgula, ponto-e-vírgula e ponto final, da Língua Portuguesa.
Ainda como elemento histórico desta importância podemos dizer que o Talmude menciona estes sinais, fazendo uso dos mesmos, alguns sinais de pontuação foram colocados antes mesmo da padronização dos sinais vocálicos. Inclusive em uma versão da Septuaginta do séc. 2 pode ser percebido que o espaçamento entre as palavras do texto grego seguem a pontuação do texto hebraico.[7]
Havendo grande concordância entre os autores sobre o fato de que existe uma função concreta para os acentos, e que esta função realmente traz luzes para a interpretação do texto, parece então ficar evidente que é preciso que seja dada a devida atenção a estes sinais. Waltke e O’connor escrevem:

A variedade de pronúncias entre as várias comunidades judaicas sinaliza que se deve ser cauteloso na absolutização de qualquer sistema acentual, embora o extremo de negligenciar a filologia tradicional não seja justificado. No momento, é melhor considerar os acentos como uma testemunha primitiva e relativamente confiável para uma interpretação correta do texto.[8]

Do ponto de vista prático e exegético, é bastante comum os alunos se esquecerem de elementos simples como este para sua interpretação do texto. Quando isso acontece uma grande parcela semântica de elementos pertinentes ao texto deixa de ser utilizada, portanto tem sua interpretação prejudicada.
Dois elementos bastante significativos neste sentido são o caso do substantivo no construto e o da conjunção Vav. No primeiro, quando um substantivo está no estado construto, ou seja, em direta dependência com outro substantivo no absoluto, a acentuação do substantivo no construto fica enfraquecida (sempre por um acento conjuntivo), justamente para que se possa pronunciar os dois substantivos como uma única unidade de fala.[9]
Desta forma, parece que os massoretas “leram” a necessidade de se manter esta unidade e a preservaram através de uma sinalização audível que são os acentos, que por sua vez, ao pronunciarem estes substantivos garantiriam que fossem entendidos conjuntamente, transmitindo assim, um bloco de idéias independente.
No segundo caso, o da conjunção Vav, há uma mudança significativa na acentuação da palavra que precede imediatamente a conjunção Vav, demonstrando que a palavra fica como que em pausa, justamente para enfatizar o fim de um bloco de idéias, e o início marcante de um novo bloco, mostrando a relação entre as duas partes, e ao mesmo tempo o microcosmo de cada um destes blocos.[10] Este tipo de detalhe na interpretação de um texto, creio, não consiste em uma filigrana, mas sim, em um ponto basilar para que o exegeta possa perceber “os vários pequenos tijolos” que juntos constroem um “muro”. Isolados não teriam sentido, contudo bem colocados conferem inteireza à construção.
Contudo, qualquer idioma tem limitações semânticas quanto ao seu registro gráfico, um texto não pode ser abordado da mesma forma que uma equação matemática, pois esta deve ser sempre compreendida da mesma forma em qualquer contexto, ao passo que uma expressão de uma língua precisa de muitos elementos externos para ser devidamente compreendida. Veja o seguinte:

Uma forma de desenvolver um critério descritivo para definir o período leva em consideração as melodias e os acentos tônicos que acompanham suas palavras. Um período declarativo em português é marcado por uma entonação descendente no seu término; a entonação é ascendente no fim de um período interrogativo. Sinais melódicos são expressos na escrita pelos sinais de pontuação (pontos finais, pontos de interrogação, pontos de exclamação, etc.). Tal abordagem é de uso limitado no hebraico bíblico, porque o sistema de acentuação massorética - embora pretendesse separar relações de palavra na cantilação – não coincide precisamente com as a unidades gramaticais.[11]
Ainda quanto à importância dos acentos, e os cuidados devidos para sua utilização, também nos advertem Waltke e O’connor dizendo o seguinte, citando Israel Yeivin (1923- 2008):

Os massoretas supriram o texto preservado com quatro características que auxiliam o exegeta na análise tanto das unidades de pensamento do discurso com todas as relações entre orações e palavras. (...) Os acentos constituem a mais complexa dessas características. (...) o sistema de acentuação é mais importante para se entender o relacionamento de palavras e orações dentro de um determinado versículo. Contudo, tal entendimento não é estritamente o alvo primeiro dos acentos. (...) ‘Sua função primária... é representar os motivos musicais para que o texto bíblico fosse cantado na leitura pública. Esse canto aumentava a beleza e solenidade da leitura, mas, visto que o propósito da leitura era apresentar o texto clara e inteligivelmente aos ouvintes, o canto é dependente do texto e enfatiza as relações lógicas das palavras. Conseqüentemente, a segunda função dos acentos é indicar o interrelacionamento das palavras no texto.’ [12]

Então diante desta afirmação, percebe-se que não se pode ir de um extremo a outro, isto é, nem é correto negligenciar a ferramenta que representa os sinais massoréticos, nem devemos nos guiar irrestritamente por eles, pois de certa forma eles carregam consigo uma certe dose de elementos hermenêuticos. Devem ser utilizados com cuidado sob o bom senso, coerência gramatical, sintático-semântica, bem como o contexto, e gênero literário.
É justamente por negligenciarem estes valiosos indicadores presentes no texto, que se vê alunos de graduação, e mesmo teólogos formados, procurando, para não dizer tateando, em comentários, e manuais a possível interpretação do texto sem antes mesmo terem sua opinião sintatico-semântica formada.
Ora, quanto menos elementos recolhidos de um dado texto houver, mais esforço e incerteza haverá. O contrário também é verdadeiro. Quanto mais elementos possuir, menor será o esforço e tanto mais certeza poderá haver, pois se percebe que está se lidando com elementos concretos e procedentes.
Desta forma, enfatizo a importância da consideração deste tema para uma exegese, em qualquer nível, seja no acadêmico, pastoral para o sermão dominical, ou mesmo na orientação da igreja para a melhor compreensão da sã doutrina.


[1] Kelley. Page H.. Gramática do Hebraico Bíblico. Editora Sinodal, IEPG. São Leopoldo. 2000. p. 36.
[2] LAMBDIN. Thomas O.. Introduction to Biblical Hebrew. Charles Scribner’s Sons. New York. 1971. § 152.
[3] MEYER. Rudolf. Gramática Del Hebreo Bíblico. CLIE. Barcelona. 1989. p. 83-84.
[4] MEYER. Rudolf. Gramática Del Hebreo Bíblico. CLIE. Barcelona. 1989. p. 86.
[5] FRANCISCO, Edson de Faria. Manual da Bíblia Hebraica. Editora Vida Nova. São Paulo. 2088. 3ª edição revisada e ampliada. p. 202.
[6] REVELL, E. J.. Biblical Punctuation and Chant in the Second Templo Period. Journal for the Study of Judaism 7 (1976) 181-98, na p. 181. in WALTKE. Bruce K., & O’CONNOR, M. Introdução á Sintaxe do Hebraico Bíblico. Casa Editora Presbiteriana. São Paulo. 2006. § 1.6.4a. p. 29.
[7] WALTKE. Bruce K., & O’CONNOR, M. Introdução á Sintaxe do Hebraico Bíblico. Casa Editora Presbiteriana. São Paulo. 2006. § 1.6.4.c, p. 29-30.
[8]  WALTKE. Bruce K., & O’CONNOR, M. Introdução á Sintaxe do Hebraico Bíblico. Casa Editora Presbiteriana. São Paulo. 2006. § 1.6.4.c, p. 30.
[9] WALTKE. Bruce K., & O’CONNOR, M. Introdução á Sintaxe do Hebraico Bíblico. Casa Editora Presbiteriana. São Paulo. 2006. § 9.2.c, p. 138.
Ver também Kelley. Page H.. Gramática do Hebraico Bíblico. Editora Sinodal, IEPG. São Leopoldo. 2000. p. 85 e 91.
[10] WALTKE. Bruce K., & O’CONNOR, M. Introdução á Sintaxe do Hebraico Bíblico. Casa Editora Presbiteriana. São Paulo. 2006. § 32.1.1, p. 520; § 33.1.1.a  p. 543.
Ver também Kelley. Page H.. Gramática do Hebraico Bíblico. Editora Sinodal, IEPG. São Leopoldo. 2000. p. 55.
[11] COHEN, M. B.. Masoretic Accents as a Biblical Commentary. Journal of the Ancient Near Eastern Society 4 (1972) 2-11 in WALTKE. Bruce K., & O’CONNOR, M. Introdução á Sintaxe do Hebraico Bíblico. Casa Editora Presbiteriana. São Paulo. 2006. § 4b. p. 78
[12] WALTKE. Bruce K., & O’CONNOR, M. Introdução á Sintaxe do Hebraico Bíblico. Casa Editora Presbiteriana. São Paulo. 2006. § 38.c, p. 633.
Ver também YEIVIN, Israel. Introduction to the Tiberian Masorah, org. e trad. Por E. J. Revell. (Massoretic Studies 5; Missoula: Scholars Press, 1980).